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A mulher e o homem da voz

Noite relativamente fria. São Paulo sempre fora seu berço. Nascida, criada e amante assumida da cidade cinza da garoa. Simpatizava inclusive com seu ar acinzentado. Não fazia o tipo de paulistana que insiste em dizer que ali também havia sol – mesmo havendo. Entendia a importância da falta de cor e também a de colorir, como a dos grafites que cobriam a cidade – provavelmente mais ou na mesma medida que a luz solar. Avenidas, muros e até mesmo chãos. O concreto ali vivia! Se levantava e saia dançando sem nenhuma pretensão. Que poder tem a cor! Compreendia e talvez tenha aprendido com esta cidade a capacidade de se colorir, dar brilho ao opaco, de dançar sem nenhuma pretensão como faziam os grafites. Entretanto, ela não perdia seu olhar respeitoso ao úmido e turvo.

Nesta noite de quarta-feira vestida com seu casaco amarelo seguia caminhando ruas adentro no Bixiga, lugar jeitoso e carismático no centro de São Paulo. Um lugar desconhecido sugere um sarau. Ao entrar deparou-se com um café. Ali uma porta seguida de longas escadas levou-a ao então seu destino. Apreciando alguns livros expostos e o ambiente recém-conhecido logo subiu a escadaria. No final desta estava um salão simples, amplo e aconchegante, de teto amarelo e paredes brancas, preenchido de algumas cadeiras, equipamento de som e vídeo e com poucas pessoas. Sentou-se na primeira fila curiosa a apreciar os artistas que ali se exporiam. Pensava o quão exposto era o artista que assumia assim ser - sabendo bem que todos somos, assumidos ou não. A exposição humana é inevitável, se não na arte noutro meio qualquer.

A noite se seguiu, o lugar intimista apresentou-lhe diversas manifestações artísticas da mais alta sinceridade! Música, poesia, dança e o que mais tivessem vontade de mostrar! Talvez nunca havia presenciado tanta verdade num só ambiente, em tanta gente de uma só vez – havendo ali não mais que vinte ou trinta pessoas. Em meio à sociedade pútrida em que vivia sentiu-se maravilhada ao ver tamanha sensibilidade compartilhada tão naturalmente, como quem nasce e como quem morre. A verdade torna-se cada vez mais rara num mundo de botões tecnológicos. Para ela encontrar-se com aquele lugar foi chocante – no melhor dos sentidos.

Já emocionada com as incríveis apresentações daquela noite houve um momento em que foi à frente de todos um homem. Sua aparência lhe remetia algo diferente e familiar, ela mesma não conseguia chegar a uma certa conclusão. Aparentava sério e descontraído ao mesmo tempo. Sujeito de altura média, cabelos grisalhos e sobrancelhas grossas seguidas de um olhar penetrante. Vestia roupas simples e despojadas. No primeiro segundo em que ele se levantou da cadeira, andou até a frente, abriu sua boca soltando a voz, ela não pode conter suas lágrimas já guardadas durante todo o inicio do espetáculo. Ele a tocou de forma estranha. Sentiu-se confortável, como quem poderia ficar a ouvi-lo por horas.

O que tinha naquele homem que tanto a estimou? O homem cantou, terminou seu numero e após os altos aplausos voltou ao seu lugar - que ficava inclusive, ao lado dela, na primeira fila acompanhado de uma senhorinha simpática. Queria tê-lo cumprimentado e elogiado tudo aquilo, explicado o quão importante ele tinha sido naquele momento e viria a ser a partir dali em sua vida. Mas resolveu não o fazer. Estava bem sentindo-o assim mesmo, misteriosamente, em silêncio, em forma de aplauso e emoção.

O lugar continuou a funcionar no restante da noite com toda sua singela e grandiosa sinceridade. Ela partiu por volta das onze horas a pensar o quanto fora especial e o quanto o homem da voz a tocou. Seria ele mais de verdade que os outros? Acreditava que não. Mas que sua representação a penetrou como poucas e raras ocasiões. Dali saíra outra mulher. Numa noite de quarta-feira em São Paulo foi descoberta uma porta para a verdade.


 

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